segunda-feira, 19 de junho de 2017

ENEM





Sempre digo para os meus alunos – que na verdade não passam de uma meia dúzia de moscas acima da minha cabeça: Não testem demais a paciência de seus leitores-ouvintes.

Antes de tudo, ou antes de nada, é necessário falar de duas pessoas e do que eles fizeram, primeiro é Georges Perec, o escritor francês, que entre outros quebra-cabeças literários – vamos chama-los assim – ficou famoso por escrever sobre o que ocorre quando não ocorre nada (é famoso sua tentativa de, ao sentar por alguns dias num café de Paris, narrar tudo aquilo que ocorria a frente dos seus olhos: o movimento das nuvens, a placa dos carros, as roupas das pessoas... “O que ocorre quando não ocorre nada”). E também por suas listas.

Uma dessas listas Perequianas é uma sobre tudo o que ele lembrava desde a infância, intitulada “Eu me Lembro”. E a outra é uma catalogação de tudo o que ele comeu durante um ano, entre sólidos e liquidos. 

O segundo personagem convocado aqui é Fu-Manchu. Para quem nunca ouviu falar, Fu-Manchu é aquele típico vilão japonês que aparece em um meio mundo de filmes B, tem longos bigodes e leva esse nome quando roteirista não que pensar muito ao descrever um antagonista asiático. É um desses nomes que servem para dar rosto a alguém sem rosto, vamos dizer assim. Você leitor, pense num japonês vilão de filme. Pronto! Chama-se Fu-Manchu.

Um conselho que meu Tio Avellar sempre me dava era: Na hora de escrever, tenha calma, pois uma hora a prosa aparece. Seria normal e até corriqueiro ele dizer isso se não fosse analfabeto. 

Dia desses, pensei muito nele e no seu analfabetismo crônico quando me vi sentando numa sala de aula para prestar o vestibular sem nem saber direito o porque e para que eu me punha a prova naquele teste, então, com medo de sair de lá preso por me movimentar ou me angustiar demais passei os sessenta minutos antes da prova iniciar impedido de fazer qualquer coisa que não pensar ou comer, conforme as regras desse jogo chamado ENEM. 

Sessenta minutos completamente preso dentro da minha caveira, como dizia David Foster Wallace.

Durante aquela hora no exame pensei muito em Georges Perec, ou no que Perec narraria se ali estivesse confinado sem poder fazer nada exceto se coçar ou comer uma maçã. Depois de um pequeno ensaio imaginário sobre esse tema, que infelizmente esqueci, assumi meu papel de turista naquela sala de aula e decifrei as pinturas rupestres de minha caverna particular.

Coisas e códigos escritos na minha banca de colegial pelos alunos do Colégio Estadual Ovidio Edgar: O escudo do Clube de Regatas Brasil; um rosto japonês, com longos bigodes, que apelidei de Doutor Fu-Manchu; dois pênis que mais pareciam borboletas espetadas; uma tentativa de elaborar algumas letras japonesas ou componentes do alfabeto japonês, que imagino terem sido obras do mesmo autor do Fu-Manchu; diversas colas matemáticas e químicas; uma gabarito: 1-B, 2-C, 3-A (que fiquei tentado a copiar na minha prova, julgando ser ali um sinal divino ou de meu amigo Fu-Manchu)...

Coisas e códigos escritos nas paredes da sala de aula: o nome “Igor”, escrito em várias caligrafias e com vários tipos de caneta, certamente derivações do mesmo meliante para burlar as autoridades locais pedagógicas; um número de telefone repetido também diversas vezes; uma vagina cabeluda acompanhada da frase: “Essa é da tua mãe”; Um chiclete colado na parede moldado em forma de lagartixa.

Coisas que pensei durante o Enem: Numa xícara de café com leite; na minha namorada; em como era benéfico estar em silêncio, sem celular para criar algo. 

Vendo todas aquelas manifestações contra o tédio nas paredes e bancas, tentei imaginar o que um extraterrestre pensaria ou que impressões poderia ter de nós algum viajante do futuro ao encontrar aquele pedaço de carteira cheia de palavrões e genitálias. Pensariam que somos fornicadores empedernidos? 

Lembrei de Enrique Vila-Matas, outro Perequiano, que disse que provavelmente os E.Ts só se espantariam com a humanidade ao descobrir que metade de nós raspa a cara pela manhã enquanto outra metade não.

Até hoje não sei quanto tirei ou se passei em alguma coisa.