terça-feira, 6 de setembro de 2016

O MAL É O QUE SAI DAS CAIXAS DE SOM DAS LOJAS DE DEPARTAMENTO



(Eduardo Salles)


“É preciso que o artista atue de forma que a posteridade seja levada a crer que ele não existiu”. Assim Gustave Flaubert, o homem-pena francês, definiu a profissão de DJ de loja, essa figura anônima por trás da trilha sonora que embala compras, dividas e furtos. 

Dono de uma das profissões mais antigas do mundo, o DJ de loja resiste bravamente atirando suas pedras sonoras nas vidraças de nossas rotinas e das agencias de publicidade moderninhas que tentam roubar seu lugar vendendo esse serviço num case gourmet de bem-estar social & experiência para empresários desinformados e insensíveis. 

Entre as gôndolas e o alheamento do público, o DJ de loja trabalha de mãos dadas com o anonimato tal qual a máxima Flaubertiana; ou tal qual um Banksy das farinhas de roscas ou um Thomas Pynchon da seção de cosméticos ou ao menos igual ao pichador urbano que espalha pela cidade as preferências sexuais do deputado Alberto Sexta-Feira – outro exemplar artista da província.

A figura que é paga para elaborar a trilha sonora do local com a maior concentração de donas de casa por metro quadrado de Maceió deu, na tarde desta terça, uma demonstração de ousadia e inteligência no pout-pourri escolhido; uma inteligência que se não é guiada pela loucura ao menos é movida a INSS e seguro desemprego. Apesar do alheamento e da aparente caretice de seu público no supermercado, ele conseguiu, mais uma vez, imprimir seu CPF em nossas mentes movidas a crédito e débito. Foi na fila, precedido por três simpáticas sósias de Marechal Deodoro da Fonseca, que escutei explodir pelas caixas de som um reggae que dizia assim: 

“Você pode fumar baseado/ baseado em que você pode fazer quase tudo/ Contanto que você possua/ mas não seja possuído”

Mais assustado do que surpreso por ainda existir o conjunto intitulado Cidade Negra foi ouvir essa música passando despercebida pelos ouvidos do habitual público presente.

“Porque o mal nunca entrou pela boca do homem/ Porque o mal é o que sai da boca do homem”

Mocinhas na sessão de material escolar, mulheres adquirindo produtos de beleza ou evangélicos buscando bíblias que combinassem com seus conjuntos sequer esboçaram um mísero risinho chocho ou um tímido: “ave cristo!” enquanto seguia o som:

“Você pode beber baseado/ baseado em que você pode beber quase tudo/ Contanto que deixe um pouquinho/ um pouquinho pro santo”

Sequer notei gerentes ou seguranças correrem até as os fundos da loja para impedirem aquele momento de contravenção do selecionador musical, que certamente podia ser um estagiário ou o moço do almoxarifado; afinal, o artista é também um anarquista de primeira, um detonador dos pilares do capitalismo. 

Claro que podia ser somente uma genial molecagem aquilo ou o mero acaso do selecionador randômico do computador se logo em seguida não começasse a tocar É Proibido Proibir na voz de Caetano Veloso, como confirmação de que ali, por trás da trilha sonora da Casa Vieira, estava uma inteligência rara e humana e não a ingenuidade do Windows Media Player.  

Ao fim dos seis minutos redentores havia lágrimas nos meus olhos e pensei que mais injusto do que maçãs a 11 reais o quilo, ou mais injusto do que desvirtuar citações de monstros da literatura, era somente o carinho com que as velhas maconheiras a minha frente seguravam os pacotes de pão de forma e os potinhos de nutella que certamente iriam por fim as suas laricas de fim de tarde.

Cid Brasil

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