quarta-feira, 25 de maio de 2016

O AUTOMÓVEL



 
(Sam Kalda)


Mamãe, meu pai, meu irmão e eu nunca andamos todos juntos naquele carro. O carro acompanhou muitas brigas e tragédias, mas apenas em duetos ou tercetos. No fim acabei ficando com ele. Acredito que daria uma boa crônica familiar o passeio desse automóvel por nossa casa, até porque a vida de papai seria um relato financeiro, talvez esportivo – frio e sem poesia –; mamãe seria o equivalente, com sua vida espartana, a um romance caudaloso, longo demais... E meu irmão daria um conto triste. Belo e triste. Um conto que deixa mais desamparo do que soluções ao final. A única história que passeia por todos nós, de alguma forma, talvez seja mesmo a do carro.

Essa é uma história confusa igual ao funcionamento de um motor, confusa igual as engrenagens de uma família, confusa igual aos gêneros literários. Igual a tudo na vida, acho.

Após o acidente que vitimou meu irmão, a ideia inicial era vender a carcaça o mais rápido possível, mas meu pai se negou a vender o Kadet 2.0 para um ferro velho. Meu pai acreditava que pegaria muito mais dinheiro se consertasse a lataria e o motor e o pusesse numa concessionária para ser vendido depois. Seu luto foi assim, estranho. 

A crônica sobre o carro começa dessa forma: Sob uma crise financeira e uma ditadura patriarcal. Por esses motivos, tivemos, minha mãe e eu, que aguentar o carro onde meu irmão morreu de volta na nossa casa, no quintal, somente um mês após o ocorrido. 

Tomada essa decisão o casamento de meus pais foi perdendo combustível e até hoje não sei se eles brigavam mais pelo carro estar ali do que pela morte do meu irmão. Acredito que meu pai pensava ouvir reclames sobre não ter se livrado logo do carro enquanto minha pensava falar sobre o erro de dar um carro a um rapaz de dezessete anos sem habilitação. O negócio de vender o veículo naufragava assim que as pessoas sabiam que um jovem morrera ali, vítima de uma batida. O por quê meu pai contava sobre o acidente, eu realmente não sei; quem sabe por culpa ou por não concordar com os valores oferecidos.

No dia em que rompeu com minha mãe o “eu te amo e não te abandonarei” que ele disse para mim foi assim:“Deixo o carro para vocês, se o venderem, me avisem e repartimos o dinheiro”. Nessa época, com acidente e separação, eu sempre tinha um sonho recorrente: O de nunca conseguir frear o carro, fosse a duzentos ou a vinte por hora. Esses sonhos só acabaram justamente quando aprendi a dirigir. Ou melhor, quando sentei no banco em que meu irmão morrera.

Ao lado da minha mãe, comecei com trajetos curtos, até a padaria, a locadora de filmes, depois fui me acostumando a pilotar sozinho e ia cada vez mais longe, seguia dirigindo a esmo, em muitas oportunidades pegava meu pai e saímos por aí, no mais absoluto silêncio. Acho que é aqui que começa a crônica do automóvel e que termina o conto do meu irmão, comigo dirigindo a toa seu antigo carro, ao lado do meu pai, enquanto ouvia música e chorava pensando nele. Tenho que escrever esse conto um dia, mas ele acabará assim: Com meu pai dormindo no banco do carro, ou fingindo dormir, ou fingindo não me ver chorar.

Curiosamente quando finalmente julguei que o carro ficaria comigo para sempre, apareceu um comprador. Ainda pensei em confessar ao homem que meu irmão havia morrido nele; mas como precisávamos mais de dinheiro do que qualquer outra coisa, fiquei quieto. Na verdade é aqui que acaba a crônica do carro, comigo passando a chave para esse homem.

Cid Brasil

quarta-feira, 11 de maio de 2016

EMILIO





Dizia se chamar Emilio e era magro feito um palito. Segundo seu currículo havia passado longas temporadas como churrasqueiro nas melhores casas do ramo em cidades do interior de Goiás e de Pernambuco. 

Emilio era um homem alto, de cabelos raspados e sinistros olhos verdes. Tinha duas cicatrizes profundas no queixo, formando um eterno cavanhaque em seu rosto ossudo. Suas unhas, ao contrário da judiação de sua figura eram pintadas com base. Mãos bem asseadas, o que para um churrasqueiro é um contrassenso absurdo.

A função de averiguar a vida pregressa daquele candidato ao emprego era minha, mas por algo que na falta de um nome melhor – e essa é basicamente uma história de ocultações – chamaremos de acaso (e não de preguiça), acabei não fazendo os telefonemas que tinha de fazer para ver se Emilio era um bom funcionário. E como também ninguém apareceu até o fim do dia, ele ficou sendo o churrasqueiro titular no restaurante de minha mãe. 

Ao assumir o posto, enquanto minha mãe e eu provávamos o primeiro assado feito pelas mãos de pianista do novato, comentei, de brincadeira, que a bravura daquele carvão que engolíamos seco era de se admirar; principalmente pela carne não ter confessado nada, sequer o sabor, após a tortura em fogo alto.

Não demorou muito para vermos que Emilio além de assassinar os frangos com seus cortes pavorosos, tirava o sabor de tudo o que tocava. Quando minha mãe o informou que estava dispensado, Emilio admitiu ter inventado o currículo, mas mesmo assim pediu que lhe fosse dada uma nova chance noutra função. Precisava do emprego, pois andava angustiado temendo não poder pagar a pensão alimentícia da filha, nos disse.

Nosso adorável assassino – como então ficou conhecido por lá – foi transferido para o cargo de cumim (que na gíria dos restaurantes é apenas um nome bonito para limpador de mesas) e não demorou muito para Emilio aprender os segredos do oficio de servir e se transformar num verdadeiro prodígio das bandejas e, perdoem a rima ruim, também das gorjetas.

Não era muito de falar com os outros funcionários, porém demonstrava uma simpatia acima do normal com os clientes, mesmo com aqueles mais insuportáveis. Porém, um belo dia, após sua folga, Emilio não apareceu para trabalhar mais, nem tampouco atendeu nossos telefonemas ou apareceu para dar qualquer satisfação nos dias posteriores. 

Dois anos depois, um investigador de policia apareceu e nos perguntou se conhecíamos um tal de Oswaldo Dimas. Vendo minha cara de paisagem, o investigador mostrou uns recortes de jornal e neles vi um homem algemado, acusado de liderar uma gangue de extermínio no interior de Goiás, a foto que ilustrava uma das matérias era de Emilio. 

Tratava-se de um bandido perigosíssimo, especialista, vejam só, em assassinar suas vitimas com armas brancas. Contei para o investigador tudo o que sabia, ou seja, mais ou menos essas linhas acima. 

Revelei inclusive que meu maior espanto com tudo aquilo era o contrassenso que me parecia um assassino especialista em facas ser mostrar um verdadeiro desastre ao ter de cortar galetos e pernis. Nessa parte o investigador sorriu e disse que talvez o problema dele fosse com os vivos. Pediu ainda que se soubéssemos de mais alguma coisa que lhe telefonasse.

Fiquei alguns dias apreensivo. Cheguei, em algumas noites, a ter pesadelos horríveis com Emilio me perseguindo com uma faca nas mãos; mas depois refleti sobre a sorte e sobre a tola compaixão que nutrimos por ele e então me acalmei.

Cid Brasil

quinta-feira, 5 de maio de 2016

AQUELE MALDITO TIO QUE CONSEGUE SER MELHOR NARRADOR QUE NÓS


(Lourenço Mutarelli)


 
Tenho um tio que certa vez, buscando definir a timidez de sua nova esposa, disse que ela às vezes tinha medo até de se mexer por temer atrapalhar as moscas acima da cabeça.

Mentira, ele nunca disse algo assim sobre minha tia. Talvez eu tenha escrito isso apenas para espantar as moscas dessa página ou para me vingar de meu tio, que consegue ser mais literário que eu. Ou pelo menos consegue dizer coisas mais interessantes que eu. Falando em moscas e nesse tio, lembro que, por exemplo, ele costuma dizer que elas são as únicas coisas que restam quando não resta nada. Acima de minha cabeça pelo menos há uma reunião delas. 

Esse tio das moscas mora no interior do Rio Grande do Sul – ademais um lugar de muitas moscas – e é capaz de frases tão literárias que muitas vezes penso que é ele o escritor da família. Hilário é também o seu relato sobre o dia em que pensou estar com uma grave enfermidade por notar que suas unhas estavam amareladas demais nas pontas.

Um dia, conta, explicou isso ao filho, que prontamente foi ao google conferir o que poderia significar aquele sintoma das unhas amarelas. Rio alto sempre que me lembro da expressão de meu tio ao ouvir de seu filho que aquilo poderia ser um claro indicio de um iminente derrame pleural (uma hemorragia em torno dos pulmões). Porém meu primo só esqueceu de avisar que essa doença é algo que pode ocorrer somente em quem fuma demais, e meu tio jamais tocou num cigarro.

Temendo que o menor movimento lhe ceifasse a vida a partir daquele diagnostico vindo do respeitado computador de sua casa, meu tio ficou paralisado no sofá a espera da esposa. Conta que na saída rumo a emergência deu uma boa olhada nos móveis e nas paredes, num gesto que poderia ser identificado como o de despedida do lar, mas que só lhe trouxe desanimo e irritação devido a poeira dos cômodos.

No hospital o médico plantonista não soube explicar o que seria aquilo nas unhas e aconselhou meu tio a procurar um dermatologista. Como moravam no interior do interior do rio grande, tiveram de aguardar a visita mensal do dermatologista na cidadezinha.

Foram os piores trinta dias de meu tio, que não parava de dizer para si mesmo que estava a beira do precipício. Prontamente ditou um testamento para meu primo, onde deixava todas as suas poses (trinta cabras, o velho passat e as roupas do corpo) para serem divididos entre os pobres, ou seja, entre eles mesmos. Depois, disse que tentou escrever cartas de despedidas para seus amigos mais próximos – contou que escreveu a primeira muito demoradamente, temendo que o menor movimento lhe ceifasse a vida – sentindo uma imensa alegria ao terminar a carta, começou logo a rabiscar as outras missivas, foi só na quinta carta, ele conta, que lembrou ser analfabeto.

Nesse ponto indaguei como diabos ele podia ter escrito cartas sem saber escrever, e meu tio respondia que no leito de morte é comum os amargurados inventarem seus próprios milagres.

Vendo-o vivo e debochando da minha cara, a essa altura lhe perguntei o que disse o dermatologista quando enfim chegou o dia da consulta.

Ele pediu que eu cortasse as unhas ali mesmo, disse o meu tio, e logo depois as cheirou e me mandou fazer o mesmo. E? Eram por causa das mexericas, disse, nessa época eu tinha o hábito de descascar as laranjas com os dedos...

Cid Brasil