quarta-feira, 20 de abril de 2016

CENTRO SPORTIVO ANGUSTIANTE




(Alexandre Batibuglli)


1.
Tenho onze anos e fora o excesso de peso e a ausência de amigos me julgo uma criança feliz. Alimentado por horas de futebol na TV me matriculo na escolinha de futebol do CSA. Essa será a primeira de muitas burradas que farei ao longo da vida. Também será a primeira de muitas desistências e o primeiro de muitos traumas adquiridos por adentrar em ambientes onde não sou convidado.

2.
União e força é o que diz o lema do clube. Aqui, muitos meninos vêm para desenvolver seus potenciais diz o coordenador do lugar. Minha chuteira é da Diadora e nada pode soar mais esnobe que sua cor, dourada, presente de um tio metido a viajado e que nunca pisou num campo de futebol de periferia. De cara, já fico marcado como alguém estranho e mimado.

3.
No campo, como aquecimento, temos que dar vinte voltas ao redor do gramado. Na segunda volta minha língua já é uma borracha ressecada dentro da boca e tenho a impressão que a qualquer momento terei o apêndice estrangulado. Ouço alguns risos dos colegas, vou ficando para trás. Na terceira volta começo a caminhar. Todos terminam antes de mim.

4.
O professor vai ao centro do campo e chama todos os meninos, percebendo a minha lentidão, me manda parar e pede que eu me apresente. Ele não entende o meu nome. Mesmo de longe sinto seu bafo de cachaça e digo meu nome umas quatro vezes. O conhaque que ele ingeriu vai me desanimando aos poucos. Assis? Não. Asildis? Não. Alcebiades? Não. Desiste e pergunta em que posição eu jogo. Meio-Campo, respondo. Mas onde no meio-campo você joga, filho? Não entendo a pergunta e ele explica: De volante, na meia-esquerda ou na meia-direita? Bêbado de cansaço e alcatrão eu só consigo repetir: Alcides, jogo de Alcides, professor... A gargalhada é geral.

5.
Em seguida começamos um treino de chutes a gol. O exercício consiste no seguinte: Temos que passar a bola para o professor, que está na marca do pênalti, e correr até uma das pontas da grande área para receber o passe dele de volta e chutar de primeira; quem errar o gol terá de pagar quinze flexões. Parece tudo muito simples se você algum dia já chutou bolas pesadas e do tamanho de uma melancia, o que não é o meu caso. Ainda não desenvolvi o meu senso de humor como escudo social e minha única reação é mandar os meninos irem passando a minha frente para atrasar o meu destino.

6.
Ser o último da fila me permitiu ver que nem todos os meninos acertavam o gol e isso foi me dando uma confiança tão falsa quanto a marca da bola que segurava (a bola apesar do logo da Nike tinha a marca: Smike). Vou seguindo a fila e finalmente a minha vez chega. Ponho a bola smike no chão e passo para o professor. Parto em disparada, meus passos são pesados, meu jogo de pernas é tão lento que sinto como se estivesse correndo com uma calça jeans molhada. Talvez esteja ainda embriagado.

7.
Meu espírito é o que chega primeiro na bola e como aprendemos nos filmes ruins que fantasmas e matéria não fazem boas duplas de ataque, furo o chute. Enquanto vejo a bola sair quicando como um saci zombeteiro pela lateral, sinto meu corpo flutuar no vazio devido a força que tentei impor ao chute. Não sei até hoje qual a dor é pior, a da alma, pelo riso dos colegas; ou a das costelas, pela queda no chão esturricado.

8.
Num ato de bondade o professor me perdoa as quinze flexões que teria de fazer por errar o gol. Talvez ele tenha medo de que ao fim do expediente tenha um cadáver em mãos para despachar a família. De volta a fila de meninos ouço alguém dizer que eu parecia uma Jaca caindo. O professor a partir daí já não esquecerá o meu nome, até o fim do dia serei o Jaca. Com derivações que durante os outros chutes irão de Jaquinha até Jacaíu. “Vai lá Jaquinha!”.

9.
Faltando meia hora para o fim do treino são formados dois times para que todos possam enfim se digladiar à vontade. No coletivo sou colocado como centroavante. Sou driblado uma infinidade de vezes pelos zagueiros mais esguios; levo ainda duas cotoveladas e quase tenho o cérebro descolado ao cabecear a bola num escanteio. Cobro dois laterais sendo que um deles é invalidado porque o cobrei com o pé. Sou substituído e ouço o pedido dos meninos descalços de que deixe as chuteiras, pois elas são as únicas coisas que boas em meu desempenho.

10.
Como havia pago dois meses adiantados, fui obrigado a ir nos treinos seguintes só para ganhar novos apelidos que não vem ao caso citar. Não fiz nenhum gol, nenhum amigo. Toda terça e quinta já acordava com pavor de ir ao CSA.

11.
Uma tarde fiquei duas horas rodando a cidade inteira no ônibus até dar a hora de voltar para casa e tomei gosto por esses passeios. Foi aí, evitando ir treinar, que acredito ter tomado gosto também pela literatura. Uma tarde, um homem entrou no ônibus e resolveu minhas angustias. Portando um revólver trinta e oito anunciou o assalto e levou, entre outras coisas dos passageiros, a minha mochilinha com o par de chuteiras douradas e o uniforme de treino do CSA. Levou também um fandangos e um exemplar de Viagem ao centro da terra, do Júlio Verne.

Cid Brasil

quinta-feira, 14 de abril de 2016

FEITO FILME DO FELLINI


(Mercedes Bellido)



Era um sonho tão bonito o dessa noite meu amor e você estava nele e ele começava assim: Dentro de um imenso galpão, um lugar que bem poderia ser um complexo esportivo ou um estúdio de cinema, mas dentro desse galpão havia várias quadras de esporte e nessas quadras as pessoas jogavam tênis, squash e queimado e o mais curioso era que todos eles jogavam sem bola os seus esportes e riam e pareciam dizer que a bola era só um detalhe.

A bola, a vida, os filmes são só um detalhe se não houver alguém do nosso lado. Era o que pareciam dizer com todo aquele balé coreografado e divertido. Mas aí tem aquele filme italiano em que o protagonista vê um grupo de mímicos jogando tênis sem bola... Você não viu esse filme mas tem que ver... Tem que ver porque eu tenho lá em casa e se você não estiver comigo para vê-lo eu vou dormir por estar assistindo-o sozinho e se dormir só não vou sonhar como hoje a noite. 

Eu então me juntava a eles e jogava o jogo deles e até acertava uns três no queimado e conseguia uns dois smashs no tênis e era bem fácil acertar alguém sem a bola ou marcar pontos, coisas de sonho. E eu olhava para o teto desse lugar e o céu todo estava estrelado. Daí alguém dizia que eu tinha sido acertado no queimado imaginário ao olhar para cima e tinha que sair.

Saia do complexo de quadras esportivas e passava por uma infinidade de cafés ou de replays do mesmo café, desses cafés que vemos nesses filmes italianos e franceses e que parecem só existir lá, nos filmes italianos e franceses e nos sonhos que sonhamos depois de ver esses filmes. Um dos cafés ou todos os cafés se chamavam Café da Juventude Perdida, é título de um livro parece, e nesse Café da Juventude Perdida eu entrava.

Como toda a geografia mental dos sonhos, dentro do café havia várias telas de cinema exibindo filmes diferentes. Uma espécie de cinema sem paredes entre as salas. Era imenso.

Em frente a uma dessas telas eu via você sentada, sozinha, com um monte de sacolas de supermercado do lado e eu sabia que você estava me esperando, então sentava do teu lado, te abraçava e você sorria e me pedia silêncio porque estava vendo o filme e o filme era o Moulin Rouge, com a Nicole Kidman, só que eu detesto o Moulin Rouge, e o filme foi me dando um sono um sono um sono, como em todas as vezes que assisto, e nisso eu comentava que estava com sono e te abraçava e dizia que não era muito chegado em musical e deitava no seu colo e então dormia o sono mais puro que alguém pode sonhar. Daí acordava. E agora estou te esperando acordar para te contar esse sonho mas com medo de perder os detalhes.

Nas suas sacolas tinham chocolates.
 Cid Brasil