segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

SANCHO TAMBÉM NÃO


(Michael Sowa)


MINICONTO SOBRE A JUSTIÇA

A empregada da casa do menino era caolha e alcoólatra. Creio que um fato explica o outro, ou pelo menos o primeiro fato deve ser fruto do segundo. A empregada também surrupiava garrafas de uísque e lâmpadas do banheiro da casa dos pais do menino. O menino sabia disso e em troca dos silêncios a empregada tinha que aceitar ler com o olho bom (e com qual seria?) gibis para o menino durante a tarde. O menino tinha seis anos e estava na alfabetização. A empregada, para não gastar o olho bom ou por puro tédio ou por pura sabedoria tinha a seguinte metodologia: Lia a historinha e a certa altura parava e dizia: Você está aprendendo a ler e se quiser saber como termina tem que ir por conta própria agora. Meses depois o menino descobre que a empregada caolha inventava todos aqueles diálogos entre Cascão e Cebolinha, pois também não sabia ler.

MINICONFERÊNCIA SOBRE O CONFORMISMO

Ás vezes, muitas vezes, penso que é mesmo bom que tenhamos só uma vida para desperdiçar, como dizia o Abujamra: “A vida é sua, desperdice-a como quiser!” E eu penso que nessa vida que temos de desperdiçar, não é de todo mal que existam deficientes contentes com suas peças faltando, nem poetas analfabetos. Nem meninos que repetem de ano na escola e sorriem do próprio azar ao assumirem que dormiram demais na aula durante o ano letivo; meninos que dizem isso e que certamente no ano que vem farão tudo de novo. Ou seja: Dormirão outra vez em sala, quiçá por terem ficado até altas horas lendo romances ou se masturbando noite adentro.

MINICONFERÊNCIA SOBRE A IRONIA

Quando adolescente, intui que havia uma verdade secreta nos livros e que para poder escapar de um futuro envolvendo escola-faculdade-emprego-casório-filhos-e-caixão só havia um jeito. Um caminho. E esse caminho era o seguinte: Largar a escola e ler o máximo de livros que poderia conseguir durante a vida. Até ali só havia lido gibis e revistas de mulher pelada – não sei o que esse último dado significa, creio que aqui também se aplica aquilo de um fato explicar outro fato, ou pelo menos de o primeiro fato ser fruto do segundo. O primeiro livro que comprei após largar a escola, com quatorze anos, foi Dom Quixote. Eu não sabia, mas Dom Quixote é um romance que fala de alguém que enlouquece... De tanto ler. Dom Quixote é a história de Alonso Quijano, que cansado de uma vida medíocre, uma bela tarde veste-se com as panelas da casa e resolve ir a rua e repetir todas aquelas façanhas dos romances de cavalaria que leu durante a vida. Eis uma sinopse safada de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.

MORAL DA HISTÓRIA OU MINICONFERÊNCIA SOBRE A IMAGINAÇÃO

Sancho-Pança, que por puro interesse (e depois por puro afeto) aceita ser o fiel escudeiro de Dom Quixote naquelas aventuras inventadas, não sabia ler. O que isso explica? Creio que explica tudo e nada ao mesmo tempo.

Cid Brasil

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