terça-feira, 13 de outubro de 2015

HOJE COMECEI UM DIÁRIO



(Emiliano Ponzi)





Hoje nada aconteceu – já intuía isso – mas ainda assim preferi abrir um livro qualquer de minha biblioteca antes de sair e desandar o dia sob o signo do acaso. O escolhido foi Kafka e dele avistei a seguinte fala: “O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada no alto, mas logo acima do chão. Parece mais destinada a fazer tropeçar do que ser trilhada”. Depois tropecei nos cadarços ao me lembrar que tinha muitos compromissos. 

Hoje nada aconteceu: Tropecei, arranhei o carro em outro carro, a namorada não me respondeu, perdi sete reais, não passei desodorante. Os bancos estão em greve. Minha conta encontra-se no limiar entre ser um deserto e um mar de advogados brigando por 34 reais. A beira do cheque especial, sai do banco e entrei num sebo e comprei um livro. Paguei no débito. Um livro de relatos de Enrique Vila-Matas que curiosamente tem Kafka na capa. O livro se chama Filhos Sem Filhos e está em espanhol, fala de seres mesquinhos que perante as grandes desgraças só pensam nos próprios cadarços. Enfim, a história de todos nós. Paguei 32 reais. Fui até um café, li um pouco e grifei com caneta a seguinte frase: “Aqui cheguei sem inimigo algum que não eu mesmo – o que não é pouco”. Depois deu a hora de trabalhar e sai sem pagar o café, me julgando com esse ato ser o último dos artistas de vanguarda. Um rebelde. Um iconoclasta de si mesmo. A execução perfeita da rebeldia de gaveta.

Hoje nada aconteceu, exceto o fato de que no caminho até o trabalho avistei, no centro de Maceió, Cabeleira, um antigo companheiro de colégio que ganha a vida como artista plástico e DJ. Lembrei da frase de Vila-Matas sobre inimigos e ao notar Cabeleira rindo de mim tive ganas verdadeiras de lhe jogar o carro em cima e matá-lo. Além de ser um artista medíocre e cortesão, meu rancor por sua horrenda figura vem desde os tempos da sexta série da Escola O Castelinho. Cabeleira (José Genilson Soares) levava toda semana um daqueles enormes gafanhotos dentro de uma caixinha apenas para ver minhas lágrimas e meu pavor nos recreios. Eu tinha nove anos e cabeleira quatorze. Espero não voltar a vê-lo, caso contrário, terei de voltar a analise. Julgo ver um gafanhoto sobre esse caderno. Lavei sete vezes o rosto.

Hoje nada aconteceu, porém o trânsito fluiu e recuperei o ânimo, depois de imaginar lentas mortes para Cabeleira, cheguei enfim ao trabalho. Cheguei atrasado e o primeiro cliente que atendi no balcão foi o nobre presidente do sindicato dos artistas de Alagoas. Chama-se Vieirinha. Parecia levemente embriagado o Vieirinha e acredito que por isso ele não me reconheceu. Depois lembrei que não sou artista e que não tinha mesmo como ele me reconhecer. Comprou uma caixa de fósforos o Vieirinha. Julguei que poderia entabular uma boa conversa com este homem chamado Vieirinha, a quem conheço dos jornais e dos bares. Pretendia desabafar sobre meu inimigo Cabeleira e seus quadros; sobre o teatro e as artes locais; sobre livros... Mas o Vieirinha do sindicato dos artistas, ao ser indagado sobre as artes preferiu arrotar no meu rosto, pagar por sua caixa de fósforos e sair trombado nas mesas. No estado alcoólico em que estava, se aquele homem acendesse um cigarro, incendiaria a si mesmo. Por sorte, lhe vendi uma caixa vazia.

Hoje nada aconteceu e se tivesse acontecido, gostaria que Rubem Braga tivesse aparecido e me ensinasse a escrever crônicas. A tarde julguei de bom tom começar um diário.


Cid Brasil