sexta-feira, 29 de maio de 2015

DUDA (OU DOIS LADRÕES NUMA CASA MORTA)

(Gerard DuBois)



Se as vigas da casa tivessem quebrado talvez... Foi o que pensei assim que pus o pé naquela estante, enquanto descíamos. Você pulou direto do teto, era mais da ação, quem escorregou pela estante fui eu. Bati logo os olhos no gato de porcelana estendendo a pata no ar. As chaves que você tanto queria, da moto do velho, estavam por trás do gato. Havia ainda sete miniaturas de garrafas de coca-cola em cima da TV e um videocassete. A TV estava quente, vai saber a quantos dias estava ligada, ligada só para dar voz a casa. Na sequencia veio um comercial de margarina, um de salsicha e outro de biscoitos. Os vizinhos iriam desconfiar se eu fizesse o que você mandou, que era desligar a TV, pois apesar de também sermos vizinhos, havia os do outro lado, tinha a Dona Neide e a vida de todo mundo ali era a novela preferida da Dona Neide.

No quarto, uma cortina dava forma ao fantasma. Ia e vinha. Porra, também nunca esqueci aquela cortina balançando! Tinha uma cadeira fazendo o papel de criado mudo. Um copinho de água e um monte de caixinha de remédio lá. Você colocou todos no bolso da bermuda e disse que deviam dar barato. Mas aquelas porras eram só relaxantes musculares. Hoje, te confesso, chego a chorar de raiva me perguntando qual é o filho da puta que vende relaxante muscular para um velho com cirrose.

O infeliz morreu de boné, você disse se benzendo enquanto olhava para o Seu Samuel estirado na cama. Você tirou o boné dele e pôs do lado da cama. Eu me benzi também, mas nunca acreditei em deus, só acreditava em você, Duda. Até sua raiva pelo vigia eu adotei como minha, mas a figura do Seu Samuel me era indiferente, tudo bem que ele atrapalhava nossas correrias, mas era o trampo dele vigiar o sono daqueles bacanas. Você nunca teve patrão, Duda, eu sim, agora tenho e sei como é chato e como eles atrapalham a vida e que é preciso atrapalhar a vida de outros para esquecê-los também. Você disse algo que não ouvi enquanto vasculhava o armário do velho. Ninguém dava bola para ele, só você Duda, que o detestava. Que se benzeu. Vai ver você estava perguntando ao morto onde estavam as chaves.

Voltei na sala com minha inocência, só pensando em levar aquelas garrafinhas para o meu irmão e o gato de porcelana para minha avó e foi aí que achei as chaves, ainda pensei cara, admito, em escondê-las, pois além de não querer fazer aquilo, roubar um morto, na hora senti algo muito ruim quando vi as chaves, eu sabia que você ia vendê-la para comprar um revólver e dois meses depois, isso eu não sabia, você já aleijado por ter dado uma de valente naquele bar de playboy, diz que vai se matar, que qualquer coisa é melhor que ficar numa cadeira de rodas. No fim, Duda, aquele revólver só foi usado em você. Até hoje, mesmo cobrador de ônibus, mesmo lendo esses livrinhos de merda durante as viagens, até hoje Duda, eu penso em você, penso que a única vez que alisei teu cabelo, que te dei um beijo, que te abracei, foi quando você estava no caixão. Seu cabelo era bom, macio... Até me julgo meio veado, meio apaixonado por você. Porra, Duda, nem para minha mulher eu escrevo essas coisas...

Na parede, só havia um daqueles retratos que só tem na casa de gente velha e lá estava o Seu Samuel e uma senhora. A vida é foda. Olhei as garrafinhas, peguei uma e vi as chaves da moto. E o velho parecia rir na foto. Tenho que encontrar a culpa para dividir com alguém, Duda. É foda. Ele estava sorrindo na foto, mas a culpa não é dele, nem sua, nem minha. As vigas.

Cid Brasil


quinta-feira, 14 de maio de 2015

NINA E RODOLFO


(Odyr Bernardi)



Eram dez da manhã quando cheguei ao trabalho com a imperiosa vontade de ouvir discos de Nina Simone. Queria ouvi-la antes do primeiro café com leite, antes dos e-mails, antes das noticias ruins, das fofocas de trabalho, dos jornais, dos clientes, antes do último chá e de ter de dormir de novo... Fui trabalhar motivado apenas pela certeza de que a vida nos escapa por entre os dedos seja ao som de Calcinha Preta ou de Mozart. No mais, trabalhamos por que é preciso morrer de alguma coisa, tal qual nos ensinou Júlio Cortázar. Seja numa prova de concurso visando o futuro ou as margens do Sena flanando pelo presente a vida sempre parecerá incompleta em qualquer situação. Mas sigamos o exemplo da orquestra do Titanic e busquemos um pouco de classe.

Sobre Nina Simone, assim como tudo que vem abaixo ou acima do céu, sei pouco, muito pouco e é quase um milagre acordar e querer ouvi-la. Segundo o Deus Google, o álbum que escutei pela manhã curiosamente era o primeiro, o debute, de Nina, e se chama “Little Girl Blue”, cuja capa do disco é uma jovem Simone, sentada num banco de um parque como se esperasse alguém enquanto olha para nós, mortais, já sabendo que qualquer espera é inútil. Ainda mais se for a espera do sucesso ou da confirmação de nossos talentos. Estamos no fim dos anos cinquenta, ela é mulher, negra e nascida nos Estados Unidos, portanto, gravar um disco nessas condições (e suspeito que até nas atuais) será sempre algo digno de suspeitas por parte de qualquer artista minimamente sensível. Mas deixemos o sucesso de lado, pois citá-lo ou buscá-lo é sempre imoral, disso sabia Nina Simone. Disso sabe Rodolfo, que é um menino discreto e que gosta de colecionar o que não se pode tocar e também aprecia a arte de encarar os cadarços de seus tênis.

Rodolfo tem 9 anos e é filho de uma amiga de minha mãe e passou a tarde em meu trabalho (trabalho com minha mãe, mas não é tão folgado quanto parece. Ok, em algumas horas sim!). O menino Rodolfo só me dirigiu a palavra em duas oportunidades durante as seis horas que convivemos: Queria saber o que tanto eu escrevia aqui (falei que respondia e-mails) e qual a senha do wi-fi. Até aí nada de anormal, exceto o fato dele não ter celular ou tablet (algo tão comum entre as crianças). Quando falei a senha: vamos_pensar_na_polvora. Ele riu e disse ok. Para que você queria a senha, Rodolfo? Para rir, ele disse, e também por que gosto de saber as senhas das pessoas, algumas são engraçadas. Ah, você coleciona senhas? E Rodolfo disse que era mais ou menos isso, mas que era um pouco difícil de explicar.

Achei interessante, não gosto muito dos gênios precoces que povoam as crônicas, mas Rodolfo é espirituoso e aprecia a solidão. Não conversamos mais, apesar dele dizer que o som que rolava no meu computador era bom.

Cid Brasil

segunda-feira, 4 de maio de 2015

RAMOS


(Rodney Smith)



0 – Não estamos em Paris ou Barcelona, estamos em Maceió. 1 – E recordar isso é muito, muito importante. 2 – Uma vez fui abordado por policiais em um café por estar escrevendo. 3 -  – Pensavam, disse o policial, que eu mapeava o lugar: Os funcionários achavam que você estava marcando a saída, a entrada e os pontos cegos (onde não havia câmeras de seguranças) do local. 4 – Foi a maior glória literária que tive até a presente data. 5 – Continuei indo até o café depois disso por algum tempo. 6 – Afinal, é como disse Federico Fellini numa entrevista: “É mais fácil ser fiel a um restaurante do que a uma mulher”. 7 – Continuei cliente, mas um cliente ágrafo. 8 – Ou seja, um cliente sem lápis e papel, que sequer puxava assunto com os garçons ou com outros clientes. 9 – Uma tarde, com receio de que me denunciassem outra vez, parei de freqüentar o Café do Medo. 10 – No dia da abordagem, o policial que veio até minha mesa e pediu que eu o acompanhasse até a calçada chamava-se Ramos. Sargento Ramos. 11 – Achei justo, coerente e até sensível da parte deles que tivessem mandado algum parente de Graciliano Ramos para abordar um escritor em Maceió. 12 – Como disse, estamos em Maceió, não em Paris, Buenos Aires ou Barcelona e escrever, assim como ler, observar o ar ou mesmo respirar é algo perigoso. 13 – O Sargento Ramos perguntou se eu era escritor e falei que não. 14 – Então você estava escrevendo o que? Ele quis saber. 15 – Uma carta, respondi. 16 – Carta? E entendi que embutido nessa repetição estava a lembrança de que estávamos também em 2015 e que já haviam inventado não só o telegrafo, como também o correio eletrônico e as mensagens de celular e as videoconferências. 16 – Foi mais ou menos a partir desse dia que passei a me considerar escritor, mesmo sem livros, mesmo sem obras. 17 – Considere-se algo você também! Pensei em dizer para o Sargento Ramos. 18 – Mas só disse: É, uma carta... 19 – Como estávamos íntimos e estamos em Maceió, Sargento Ramos perguntou para quem era a carta (na hora imaginei que ele ainda me considerasse um bandido, depois vi que era apenas curiosidade). 20 – Falei que era uma carta me candidatando a uma entrevista de emprego e ele aceitou essa, ou fingiu aceitar, embora mirasse aqui e ali, a folha que eu tinha nas mãos; se não me engano ele até me ofereceu uma carona quando falei que morava no Tabuleiro. 21 – Lógico que não aceitei. 22 – Temi virar estatística. 23 – Isso foi ano passado. 24 – Está tarde, passando próximo ao Mirante do Bebedouro, vi Sargento Ramos, em trajes civis, olhando o entardecer na Lagoa Mundaú. 25 – Quando retornei, pelo mesmo caminho, uma hora depois, já escuro, ele permanecia na mesma posição. 26 – Ou morreu sentando. 27 – Ou estava muito próximo de abandonar a policia e começar a escrever cartas e contos vadios. 28 – Ou pensava em fazer tudo num só gesto, realizar sua grande obra: Atirar-se do barranco antes de mirar o vazio durante uma tarde inteira. 29 – Mas isso são conjecturas, devaneios meus, literatura, é claro! 30 – Eu estava atrasado. Não me aproximei para perguntar.

Cid Brasil