quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

TIO FLORISBERTO



(Michel Nash)




“Talvez só podemos ser realmente babacas uma vez na vida... Só uma. Me refiro a algo que nos fará chegar até o último dia lamentando... Eu já realizei a minha, e esse é o único consolo que tenho.”


Tio Florisberto não quis falar muito sobre. O paragrafo acima foi me dito cheio de reticências, pausas e mudanças bruscas de assunto: “E o Flamengo, hein?”, “Poxa, esse ano será longo: Copa do Mundo e eleições...”, “Você viu o novo filme de Brian de Palma?”. Talvez, o Tio Flori, como agente costuma chama-lo, quisesse que eu embarcasse num desse assuntos e o deixasse em paz (ou em tormenta) com seu arrependimento mor. Era a primeira vez que conversava com ele pessoalmente. Noticias suas só me chegavam pela boca de meu pai através de fotos, ou de cartões postais que ele mandava de lugares que nunca visitou e diferentes de onde estava, como Madri ou Xangai – “Só por que achava bonito a paisagem, e claro, por que não tinha fotos minhas...”, desconversava.


Retratos dele há vários aqui em casa, em todos ainda esbanja um sorriso dentuço e uma cabeleira amarela; outros ele me mostrou no celular e duas pequenas dobradas ao meio retiradas da carteira. Ao ver a última foto, com uma leve marca d’água de 1998, lembro de outras suas que vi na última experiência genealógica que empreendi por gavetas e armários daqui de casa, após uma discussão de uma hora com meu irmão sobre eu ter possuído uma casa na árvore quando criança. – Dela, da mansão do abacateiro, eu recordava de maneira viva de pelo menos o piso, com seu chão todo rente, feito de fórmica... Para minha desilusão, só cheguei a pregar o primeiro degrau. Deve ser mal de família, pois dos retratos em preto e branco das várias vidas do meu tio inédito, sempre estava ele com semblante tranquilo, tendo como cenário uma casa sem reboco, de paredes com os tijolos ainda a mostra. Meu parente que nunca se terminava. Depois, achava outra foto dele, ora segurando uma criança ora abraçada a alguma mulher, e cada vez mais seus cabelos louros rareando e em todas as casas lá, recém-construídas, com pouca mobília e muita esperança nos sorrisos e olhares.


Deve mesmo ser genético. Eu comecei tanta coisa que não terminei, e por vezes alimento uma gastrite por mulheres e projetos artísticos inacabados. Mas será que o tio sem reboco ao meu lado se pergunta aos 71 “meu deus, o que fiz da vida?”. Nos dez minutos em que ficamos conversando, os únicos de nossas vidas, durante o churrasco de boas vindas, aniversários atrasados e já de boa viagem para ele, cantamos só um parabéns e tiramos uma foto.  Ou melhor, tiraram uma foto dele de supetão, nela é possível vê-lo sentado ainda com uma cara de surpresa pelo bolo de chocolate inesperado (e indesejado, já que ele detesta bolo confeitado) – Do seu lado, estou eu, bem mais novo, mais gordo e com menos bom gosto nas roupas, ainda a olha-lo, na espera de que ele contasse qual o seu maior arrependimento.


***


Nessa manhã chegou um postal dele, com uma ilustração da torre de Pisa na Itália, – atrás ele me saúda, perguntado como vai o poeta da casa e se já casei. Nunca escrevi nenhum verso publicável, e nem a única casa que desejei consegui terminar – o cartão vem do interior do Paraná, junto de outra foto do Tio Florisberto em outra casa recém-construída, e com uma carta onde ele conta que seu maior arrependimento foi não ter se casado com uma aero moça que ele conheceu. – Finalmente está explicado os postais...



Cid Brasil

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