sábado, 30 de novembro de 2013

DESCAMINHOS


(William Mebane)



Aos nove tudo que ela queria era um namorado. Paquerou até num velório e quando conseguiu encontrar um, durou duas semanas; achou aquilo tão chato que se imaginou aos vinte e cinco com o mesmo namorado e teve a certeza que ele seria chato do mesmo jeito.

Com treze, leu numa revista que numa ruela do centro havia um senhor que dava cursos de mágica. Pronto, ficou querendo ser mágica, dizia isso para todo mundo: Nos bate-papos na internet, na rua; no cabelereiro enquanto a mãe fazia as unhas; no supermercado e pra professoras. Ninguém soube o porquê, mas ela nunca foi se matricular e por isso uma semana depois o velho fechou as portas e foi armar sua cartola noutro lugar. Ela disse que tentou se imaginar aos vinte e cinco fazendo shows de mágica em festas de crianças e por isso desistiu.

Quinze anos e com o cabelo azul tudo era o seu cabelo azul. Nas fotos do Orkut só apareciam o seu cabelo azul, no colégio era a menina do cabelo azul, no primeiro show de rock que foi o vocalista a chamou de ‘Blue girl! Aí ficou querendo ser guitarrista, e depois disso também vocalista de uma banda de metal.  Durou só um verão a cor do cabelo e seus sonhos de mudar o rock.

Nos dezesseis, começou a ler igual a uma desesperada: Ser escritora! Inventar histórias e personagens ela fazia desde sempre. Achava que como era uma grande mentirosa, seria também uma grande romancista. Leu até os dezessete tudo que pode. Com dezoito, excluiu seus perfis (tinha dois!) no Orkut; desinstalou o MSN; vendeu o celular e começou a escrever uma história sobre duas meninas que se apaixonavam: Queria chocar todo mundo... Mas nunca tinha sequer beijado, quanto mais ter vivido paixões avassaladoras. Precisava viver. Foi viver e nunca mais leu ou abriu ou escreveu um livro. - Nem beijou meninas.

Viveu até os dezoito. E viver até ali tinha sido ir pra balada toda sexta, sábado dormir na praia junto com os amigos e nos domingos se culpar por estar perdendo tempo. Foi ainda no meio dos dezoito; nos dias em que se sentia um lixo e cheia de arrependimentos que ela ouvindo música triste tentou se matar. Preparou tudo: Escreveu bilhetes, mandou e-mail para quem se importava com ela, cancelou sua assinatura da revista Super Interessante, excluiu seu antigo fotolog, doou seu cachorro pra uma vizinha, comprou giletes e uma blusa preta nova que estava na promoção. Na hora de rasgar as veias e suas dores, lembrou que tinha deixado a TV ligada e que sua mãe ficaria furiosa quando chegasse, antes de apertar o botão vermelho viu que na tela começava um filme de Woody Allen, um que falava sobre os anos de ouro do rádio. Sentou no sofá com a gilete na mão e esqueceu-se do mundo. Só teve trabalho para recuperar o cachorro. Os e-mails e cartas tinham sido brincadeira, disse para os destinatários.

Foi então, que no dia seguinte ao seu pseudo-suicidio, inspirada no filme salvador, radialista era seu novo projeto de vida. Percorreu rádios piratas, fez entrevistas com radialistas consagrados e fazia seleções imaginarias das músicas que rolariam no seu programa. O curso de radialista era muito caro para sua mãe poder pagar, então arrumou um estágio numa pequena rádio comunitária evangélica. Ficou lá dois dias, operando áudio e pondo os comerciais, num meio dia abriu o microfone e falou umas besteiras. Calúnias, segundo o dono da rádio. Segundo ela: Só tinha desejado boa tarde. Vingou-se dos microfones calando sua bela voz para sempre.

Com vinte, já tendo dúvidas sobre deus e raiva dos evangélicos. Buscou a igreja católica, depois o budismo, depois foi fazer analise. Com sua terapeuta, comentavam a tarde toda sobre os capítulos da novela: Ela atacava e a terapeuta defendia. Fez faculdade de direito e artes cênicas aos vinte e dois. Abandonou as duas, a primeira era muito careta e a segunda achou que todos se escondiam atrás do coletivo. 

Para ajudar no orçamento de si própria e a acalmar sua mãe, arrumou um emprego na loja de roupas de um tio. Ficou um ano trabalhando lá, até que chamou sem chamar um senhor de gordo e foi demitida, gastou todo o seguro desemprego no cinema. Via todos os filmes em cartaz na cidade, assim que estreavam. Os bons repetia no mesmo dia.

Numa tarde, vendo o mar e o ratos da praia assustarem as pessoas na calçada. Encontrou seu primeiro e único namorado passeando de bicicleta. Ele a levou para dar uma volta na garupa e comerem tapioca. Se surpreenderam por já fazerem dezesseis anos desde o romance dos dois. Contaram o que vinham fazendo e o que tinham feito. Ela tudo segundo ele e ele nada segundo ela. Um mês depois, ela ligou de madrugada para o rapaz da bicicleta e disse que não era chato estar com ele. No dia em que fez vinte e cinco anos, teve uma crise de enjoos e cólicas. E quando finalmente se achava em paz, pensou que iria morrer. Sua mãe, que tudo via e sabia, pediu licença e entrou no quarto. Se abraçaram e choraram. Estava grávida.

Ligou pro rapaz da bicicleta e contou aquilo. Quando desligou, sorria e chorava. Todos os descaminhos a tinham levado até ali.

Alisou a barriga que nem tinha, e disse: “Vai começar tudo de novo”.


Cid Brasil

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

PALHAÇO À PAISANA


(Brecht Vandenbroucke)



Lá fora soltam fogos, pouco me importa nessa noite, se time A ou B ganhou ou foi campeão. É só uma coisa idiota chamada futebol; tudo bem: É algo que melhora e torna mais amena a rotina de cada, tudo bem. Que festejem!

Estranhamente, nessa noite acabo de me lembrar da última vez que fui a um circo. Falo de circo-circo, daqueles com lona furada, palco do multi-homem: Que era bilheteiro, trapezista, pipoqueiro e piloto no globo da morte; daquele espaço que nos deixava apreensivos não pelo atirador de facas, mas sim por causa da arquibancada mal fincada no chão que balançava a cada ato, provavelmente pregada pelo vizinho também desempregado ou por outros desocupados que acompanhavam o Gurgel anunciando a chegada do “Mundo mágico do circo”. E claro, o palhaço levemente alcoolizado.

Fui junto com o João, que era caseiro do sítio onde eu morava, e no fim voltando para a casa, eu devia ter uns sete anos e o João parou no bar do Pereira para tomar a última do dia, e para a surpresa de todas as crianças que acompanhavam os pais, tios ou agregados nas ‘últimas do dia’, o palhaço do circo estava lá na mesma missão. Obviamente sem maquiagem, sem peruca roxa e sem o sapato número 55. Era um senhor, baixinho, de olhos fundos e pele queimada. Parecia tímido, escorado no balcão olhando o copo vazio. Me lembro que o João chegou no balcão e o palhaço à paisana perguntou se eu era filho dele. “Não, esse é filho da minha patroa!”, disse o João segurando minha mão. O homem, que ainda tinha um pouco de maquiagem perto do pescoço me olhou demoradamente, deu um sorriso mais triste que sua figura e quis saber se eu tinha gostado da apresentação, logo depois se apresentou só para nos dois como Palhaço Gastrite.

João quis saber como era a vida no circo, quanto ele ganhava, se fazia muito tempo que ele era palhaço... Não me lembro das respostas do Senhor Gastrite, mas sim de sua expressão cansada e da sua mão direita que ia, vinha e fazia desenhos no ar a cada frase, a outra mão, sempre no bolso da bermuda, escondida. Do que ele disse, só recordo quando tocou no ombro do João chamando-o de amigo e a mim de amiguinho e disse: “Haja o que houver meu coleguinha, nunca desanime. Sorria!”.

Eu não iria escrever sobre isso; escritores de verdade dizem que na verdade agente nunca escreve o que quer. Deve ser a mesma coisa com a vida, agente nunca leva a vida que se quer. Pois no dia em que me lembrei do homem que pediu para que eu mantivesse a alegria mesmo que a lona furasse, o carro quebrasse ou ninguém aparecesse, estou profundamente triste. Igual a ele, naquele bar. Igual talvez, aos torcedores do time derrotado no inicio dessa crônica.

Cid Brasil

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O CORONEL SOMOS NÓS


(Capa do Livro: "Sabres e Utopias", de Mário Vargas Llosa)



Pela primeira vez desde que batizaram aquela avenida com um nome de coronel, as reclamações e buzinaços contra o carro ou o próximo não foram ouvidas. Hoje a Avenida Fernandes Lima, em pleno meio dia estava em paz. Tudo por que os protagonistas da cena, do chão e dos papos que muitos daqueles terão no futuro, já não eram mais nada, apenas receptáculos daquelas frases soltas que seriam depois repetidas em mesas de bares, comunidades, redes sociais e em aplicativos de celulares.

“Mataram dois bandidos aqui em plena Fernandes Lima, amor!”, disse um.

O clichê tomava conta da hora, das roupas, da cena e das frases; não satisfeitos, outros reproduziam ainda frases feitas ouvidas por outros mais abastados e melhor engravatados: “Bandido bom é bandido morto!”, “Só assim pra acabar com a violência”, “Tem de voltar a ser na lei do Lampião!”, “o diálogo da população tem de ser esse: Na bala!”.

Tudo isso e menos um pouco aconteceu hoje na Avenida Fernandes Lima, e está acontecendo (e acontecerá em Maceió por muito tempo). Os do chão: Antigos assaltantes e agora estatísticas tiveram azar, na linguagem dos vivos “a sorte que mereciam”. Os que estavam em pé: Antigas vitimas e agora agressores, se orgulhavam, sentiam-se protegidos e honrados. Para muitos daqueles o fim da violência no estado estava começando.

***

Bem mais tarde, conversando com um garçom num restaurante, moço bem menos engravatado, marcado e letrado do que os que aparentemente julgavam a cena, disse que não entendia o porquê não só dos três tiros como também da morte do outro, “não bastava rendê-lo?”, foi a frase mais sensata que ouvi hoje. Lembrei na hora de Clarice Linspector, que numa entrevista se dizia chocada com um crime contra um bandido chamado Mineirinho, onde ele tinha sido morto com quatorze tiros, Clarice diz que qualquer que houvesse sido o crime de Mineirinho, uma bala bastava, todas as outras já eram vontade de matar. Não consigo encontrar definição melhor, não só para o crime que deve acontecer nesse momento em que você e eu leitor sobrevivemos em nossas casas, mas sim para a vontade tão inocentemente banhada pela ignorância das pessoas formando aquele ringue na Avenida Fernandes Lima, em redor dos dois lutadores abatidos e do pseudo-herói comemorando e sendo celebrado por aí. – às escondidas.

Não sei. Mas sendo alagoano, tendo vinte e cinco anos de experiência nesse asfalto, duvido que alguma coisa possa mudar amanhã, depois de amanhã ou até mesmo após aqueles corpos terem sido recolhidos. Nesse instante, tenho de apelar para a ficção, para algo que romanceei – adoraria dizer que inventei... – Que é uma frase do governador Leopoldo Vasconcelos, do meu romance ‘Grão de Paris’, onde ele, após ouvir uma conversa numa festa entre dois ‘cidadãos comuns’, comenta: “Depois dizem que o coronel sou eu...”


Cid Brasil

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

PREFERÊNCIAS


(Zach Driftwood)



“Gosto mais de bicho do que de gente!”, é uma boa frase para se dizer ou se estampar numa camiseta; é também um bom modo de (por incrível que pareça) fazer amigos. Eu não sei, mas se uma pessoa diz isso, imagino que ela estará também incluindo aí no seu seleto grupo de seres vivos preferenciais, também as cobras, aranhas, rinocerontes, jaguatiricas, hienas, tubarões, pombos e baratas. Mas eu nunca vi nenhuma foto tendo como legenda a frase que abre essa crônica sendo estampada por um rato, por exemplo – Nem sequer aqueles branquinhos, de laboratório. Me parece que também não há espaço para diversidade nesses afetos. São sempre os caninos que posam, ou como diz o Loíde, do filme Debi & Loíde: “Cachorros... para os leigos!”.

Na minha casa não tem cachorros, tem apenas um gato preto, que só dois meses depois todos vieram saber que era uma gata, se chama Mima e não goza de muito prestigio entre os de duas pernas, que evitam cruzarem seu caminho... Ou vice e versa. – Outros gatos também não são lá muito chegados na Mima, vide as escoriações que ela aparece de vez em quando ao retornar das baladas na madruga enquanto eu digito alguma crônica, mas com seus semelhantes felinos (gatos... Para os leigos!), não sei o que ocorre: Se o problema é por ela ser fêmea, preta, gorda ou preguiçosa.

Então, eu só me lembrei da fina frase dos gostos lá, por que a primeira pessoa que eu ouvi dizer isso foi uma namorada minha; isso nas priscas eras do Orkut e de quando o gato daqui de casa era amarelo e sofria dos mesmos problemas do gato preto; essa moça: A namorada, não a minha gata; postava isso direto, com algumas variações que agora não lembro, talvez por causa do trauma. Na noite em que li isso, eu fiquei pensando em situações tipo: Um incêndio, um maremoto, um deslizamento de uma barreira ou um naufrágio... E em todas essas cenas eu e seu cachorrinho no centro da desgraça; pelos lemas que ela soltava (e solta!) o que late daria de 3 a 0 no que escreve. Nem sequer o meu gato sobreviveria, pois ela tinha horror a gato, mais até do que o basset que ela alimentava dentro e fora de si.

Na manhã seguinte, telefonei para ela com o habitual: “Precisamos ter uma conversa séria!” e depois usei o famigerado: “O problema não é com você, é comigo...”, meia hora de esculhambações depois, eu respirava aliviado e ela confirmava suas predileções pelos de quatro patas numa comunidade. Dia desses, ela voltou a me adicionar na rede, e postou de maneira enigmática: Saudades de quem já se foi.

Não era comigo, pois na foto em preto e branco, ela estava abraçada agora com um poodle. Teve 84 curtidas até o momento.


Cid Brasil