sábado, 22 de junho de 2013

OS CACOS EMBAIXO DA PIA



(Gerard Dubois)



Vinha eu pela casa, misturando breves ilusões com poesias: Me sentindo um ‘acendedor de lampiões’ que antecipa sua tarefa devido a hora, ia assoprando as luzes que me restavam daquela madrugada. Já no banheiro, na última lâmpada, entre o interruptor final e a escuridão, senti o dorso da mão bater em algo.

Ao acender a luz, percebi os cacos do meu gesto desastrado. Rodeado por aquele campo minado, pensei ter acordado ali meio mundo, por um momento ainda ouvia o silêncio de pálpebras cerradas. Era ali, mais uma coisa que tinha de limpar, mais um vacilo para consertar. Não podia deixar aquilo para outro dia. Ao me ajoelhar, já não pensava em poesia, desci. Pensando nas desculpas que devia.

As palavras que mais doíam, eram sempre as gritadas. Aquelas faladas em caixa altas. – Isso era o que eu pensava antes. Antes daquele som e do seu resultado.

Recolhi primeiro a base da taça, que com a queda se transformou numa coroa afiada. Foi a parte mais fácil. O mais saco, o mais difícil foi recolher os pequenos cacos ali embaixo da pia. Do alto da pia, lá de cima ou do passado, era difícil entender que o que mais doía na verdade eram aquelas coisas ditas baixinhas. Os caquinhos. Provava isso agora nos joelhos, na ponta dos dedos e na consciência.

Eram duas horas da manhã, enquanto um rapaz ia lendo em braile letras afiadas, tateando nas entrelinhas o que já havia dito para uma moça. De outro ponto, eu confundia cacos com gotas d’água, passei a mão por eles rezando serem gotas do chuveiro e não lágrimas petrificadas.

Aquela finada taça foi a mais didática das aulas: Ensinava e castigava ao mesmo tempo.

*** 

Enquanto isso, eu falava alto comigo mesmo. E para que os vidros não ferissem mais ninguém, enrolei-os numa folha de jornal. Enrolei meus cacos em novas palavras. Igual minhas desculpas, umas que devia meia hora antes. Embrulhei o grito da taça e mandei-os para o lixo. O pedido de perdão... – Para alguém.  Foram dois pentimentos materializados naquele ato. Não sei se outros pedaços desceram sozinhos pelo ralo, espero que sim, igual alguma de minhas antigas palavras, só que noutro ralo chamado esquecimento.

Embora saiba que haverá entre as frestas do piso e da alma, sobras que me farão lembrar sempre do que derramei. – Como todos os dias. No final, fui dormir pensando no que me esperava para o dia seguinte. Finalmente apaguei a última lâmpada.

***

No dia seguinte não obtive respostas. Mesmo assim todos aqui em casa diziam que acordei diferente, com outra cara, que passei o dia aparentando estar bem... Ninguém perguntou o porquê, se tivessem me indagado, eu responderia apenas: “Foi por causa de uma taça que derrubei”.

 Cid Brasil

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